domingo, 7 de junho de 2009

INFINITA VIAGEM - PAINEL II



Almada Negreiros

Há poesia em tudo – na terra e no mar, nos lagos e nas margens dos rios. Há-a também na cidade – não o neguemos – facto evidente para mim enquanto aqui estou sentado: há poesia nesta mesa, neste papel, neste tinteiro; há poesia na trepidação dos carros nas ruas; em cada movimento ínfimo, vulgar, ridículo, de um operário que, do outro lado da rua, pinta a tabuleta de um talho. (…) Existe para mim – existia – um tesouro de significado numa coisa tão ridícula como uma chave, um prego na parede, os bigodes de um gato. (…) é que a poesia é espanto, admiração, como de um ser tombado dos céus em plena consciência da queda, atónito com as coisas.


Renato

Criação de um novo painel ... Pessoa por Pessoa...


FERNANDO PESSOA

Navegar é preciso; viver não é preciso…
Viver não é necessário; o que é necessário é criar.

Copiaste? Fizeste bem.
Copia mais, sem canseira,
Copia, pilha, retém.
É a única maneira
De não escreveres asneira.


Eu sou o disfarçado, a máscara insuspeita.

Aquece, meu coração!
Aquece ao passado,
Que o presente é só uma rua onde passa quem me esqueceu…


Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro…
É a hora!

Dizem? Esquecem.
Não dizem? Dissessem.
Fazem? Fatal.
Não fazem? Igual.
Porquê esperar - Tudo é Sonhar.



... os heterónimos de Pessoa...



ÁLVARO DE CAMPOS

O Fernando Pessoa é um novelo embrulhado para o lado de dentro.
Por mim, antes de conhecer Caeiro, eu era uma máquina nervosa de não fazer coisa nenhuma.

Vendi-me de graça e deram-me feijões por troco
Os feijões dos jogos de mesa da minha infância varrida.


Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro.
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.


Tenho que arrumar a mala de ser.
Tenho que existir a arrumar malas.
Vou definitivamente arrumar a mala.
Mais vale arrumar a mala.
Fim.


Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.

Dá-me lírios, lírios,
E rosas também.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também,
Crisântemos, dálias,
Violetas, e os girassóis
Acima de todas as flores…


O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo.
O que há é pouca gente para dar por isso.
Óóóó – óóóóóóóó – óóóóóóóóóóóóóóó
(O vento lá fora).


Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com o coração: sou lúcido.


Fazei de mim qualquer coisa como se eu fosse
Arrastado – ó prazer, ó beijada dor! –
Mas isto no mar, isto no ma-a-a-ar! EH-EH-EH-EH-EH-EH! No MA-A-A-A-AR!
Grita tudo!
FIFTEEN MEN ON THE DEAD MAN’S CHEST.
YO-HO-HO AND A BOTTLE OF RUM!
Parte-se em mim qualquer coisa. O vermelho anoiteceu.


Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Cruz na porta da tabacaria! Quem morreu? (...)
Desde ontem a cidade mudou.
Ele era o dono da tabacaria. Um ponto de referência de quem sou. (...)
Desde ontem a cidade mudou.

Arre, sentir cansa, e a vida é quente quando o sol está alto.
Boa noite na Austrália!



ALBERTO CAEIRO

Bendito seja eu por tudo quanto não sei.
Gozo tudo isso como quem sabe que há o Sol.


Leio e sou límpido nas minhas intenções;
o que há de febre na simples vida abandona-me;
uma calma completa me invade.
Todo o repouso da natureza está comigo.
Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo.

Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade.


Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela única grande razão –
Porque não tinha que ser.


Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.

Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a humanidade.

Amar é a eterna inocência
E a única inocência é não pensar…




RICARDO REIS

Coroai-me de rosas
E de folhas breves
E basta.


Senta-te ao sol. Abdica
E sê rei de ti próprio.


Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é sombra
De árvores alheias.

Cumpramos o que somos.
Nada mais nos é dado.

Quer pouco: terás tudo.
Quer nada: serás livre.

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.


Desenhos de Mariana Reis (Pessoa, Campos, Caeiro e Reis)

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