quinta-feira, 18 de junho de 2009

INFINITA VIAGEM - a selecção de textos

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

(Fernando Pessoa)


Isto

Dizem que finjo ou minto

Tudo que escrevo.
Não. Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

(Fernando Pessoa)

Aniversário [excertos]

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…

Pára, meu coração! Não penses!
Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...


(Álvaro de Campos)

O Menino da Sua Mãe

No plaino abandonado
Que a morta brisa aquece,
De balas trespassado
– Duas, de lado a lado –,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
"O menino da sua mãe".

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe.
Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço...
Deu-lho a criada Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
"Que volte cedo, e bem!"
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.

(Fernando Pessoa)

Bébézinho do Nininho-ninho
Oh!
Venho só quevê pâ dizê ó Bébézinho que gotei muito da catinha d’ela. Oh!

E também tive munta pena de não tá ao pé do Bebé pâ dá jinhos.
Oh! O Nininho é pequinininho!
Hoje o Nininho não vai a Belém porque, como não sabia s’havia carros, combinei tá aqui às seis o’as.
Amanhã, a não sê qu’o Nininho não possa é que sai d’aqui pelas cinco e meia.
Amanhã o Bebé espera pelo Nininho, sim? Em Belém, sim? Sim?
Jinhos, jinhos e mais jinhos

Fernando 31/05/1920

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,

Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia

Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

(Álvaro de Campos)

Dobrada À Moda do Porto [excertos]

Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha

Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.
Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo...


Mas, se eu pedi amor,
porque é que me trouxeram Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.

(Álvaro de Campos)

O Guadador de Rebanhos [excertos]

Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.

Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Saúdo todos os que me lerem,

Tirando-lhes o chapéu largo
Saúdo-os e desejo-lhes sol,

E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predilecta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural -

Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.

Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,

Sei a verdade e sou feliz.

(Alberto Caeiro)

Lisbon Revisited (1923) [excertos]

Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!

Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?

Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço.
Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

(Álvaro de Campos)

Coroai-me de rosas, [excertos]
Coroai-me em verdade
de rosas

Rosas, rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
Tão cedo!

Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas
O resto é sombra de árvores alheias.

Quero toda a vida
Feita desta hora
Breve.

Quero ter a hora
Nas mãos pagãmente
E leve,

Mal sentir a vida,
Mal sentir o sol
Sob os ramos.

Coroai-me, coroai-me de rosas,
E de folhas breves,
E basta.


(Ricardo Reis)

Ode Triunfal e Ode Marítima [excertos]

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,

Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Olho de longe o paquete,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente,

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!

E vós, ó coisas navais, meus velhos brinquedos de sonho!

Quilhas, mastros e velas, rodas do leme, cordagens,
Caí por mim dentro em montão, em monte,
Como o conteúdo confuso de uma gaveta despejada no chão!

Treme já todo o chão do meu psiquismo.
Acelera-se cada vez mais o volante dentro de mim.
Eu, que amo a civilização moderna, eu que beijo com a alma as máquinas,

Eu o engenheiro, eu o civilizado, eu o educado no estrangeiro,
começo a sonhar, começo a envolver-me do sonho das águas,

Chamam por mim as águas,
Chamam por mim os mares,
Chamam por mim, levantando uma voz corpórea…
Tu, marinheiro inglês, Jim Barns meu amigo, foste tu
Que me ensinaste esse grito antiquíssimo, inglês,
Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò - yyy...
Schooner ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-oò -yyy...)

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!


O êxtase em mim levanta-se, cresce, avança,
E com um ruído cego de arruaça acentua-se
O giro vivo do volante.
Ah seja como for, seja por onde for, partir!
Ir, ir, ir, ir de vez!


Ó fazendas nas montras! ó manequins! ó últimos figurinos!
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!
Olá grandes armazéns com várias secções!
Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!
Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos!

Eh capitães de navios! homens ao leme e em mastros!

Homens que dormem em beliches rudes!
Eh manipuladores dos guindastes de carga! Homens do leme! homens das máquinas! homens dos mastros!

Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
A vós todos num, a vós todos em vós todos como um,

Eu vos saúdo, eu vos saúdo, eu vos saúdo!
Eh-eh-eh-eh eh! Eh eh-eh-eh eh! Eh-eh-eh eh-eh-eh eh!
Eh lahô-lahô laHO-lahá-á-á-à-à!

Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
Amo-vos carnivoramente,
Pervertidamente e enroscando a minha vista
Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,
Ó coisas todas modernas,
Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima
Do sistema imediato do Universo!
Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!


Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!
Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!
Eh-lá-hô recomposições ministeriais!

Fogo, fogo, fogo, dentro de mim!

Sangue! sangue! sangue! sangue!
Explode todo o meu cérebro!
Parte-se-me o mundo em vermelho!

(Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta!
Ah! Olhar é em mim uma perversão sexual!)


Estoiram-me com o som de amarras as veias!
E estala em mim, feroz, voraz,
A canção do Grande Pirata,
A morte berrada do Grande Pirata a cantar
Até meter pavor plas espinhas dos seus homens abaixo.
Lá da ré a morrer, e a berrar, a cantar:
Fifteen men on the Dead Man's Chest.
Yo-ho ho and a bottle of rum I

Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!
Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas,
E ser levantado da rua cheio de sangue
Sem ninguém saber quem eu sou!
Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,
Engenhos, brocas, máquinas rotativas!
Eia! eia! eia!

Fazei de mim qualquer, cousa como se eu fosse

Arrastado – ó prazer, o beijada dor! -
Mas isto no mar, isto no ma-a-a-ar,
isto no MA-A-A-AR!
Eh-eh-eh-eh-eh!
Eh--h-eh-eh-eh-eh-eh!
EH-EH-EHEH-EH-EH-EH!
No MA-A-A-A-AR!

Grita tudo! tudo a gritar! Ventos, vagas, barcos,
Marés, gáveas, piratas, a minha alma, o sangue, e o ar, e o ar!
FIFTEEN MEN ON THE DEAD MAN'S CHEST.
YO-HO-HO AND A BOTTLE OF RUM!
Eh-lahô-lahô-laHO-O-O-ôô-lahá-á à - ààà!
Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw-aw!

DARBY M'GRAW-AW AW-AW-AW-AW-AW!
FETCH A-A-AFT THE RU-U-U-U-U-UM, DARBY!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh eh-eh-eh!

Eia eletricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! Eia!
Eia! eia! eia!

Parte-se em mim qualquer coisa. O vermelho anoiteceu.


Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios.
Eia! eia-hô eia!
Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!
Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!
Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!


Galgar com tudo por cima de tudo!

Hup-lá! Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!
Hé-lá! He-hô Ho-o-o-o-o!

Decresce sensivelmente a velocidade do volante.
Boa viagem!

Boa viagem!
Boa viagem, meu pobre amigo casual, que me fizeste o favor
De levar contigo a febre e a tristeza dos meus sonhos…Boa viagem!
Boa viagem! A vida é isto...
Vai... Passa...
Com um ligeiro estremecimento,

Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!
O volante dentro de mim pára.

Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!


(Álvaro de Campos)

Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidade eu tiver,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.

Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio
De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh’alma.
Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, vive-te, rompe e foge,
Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,
Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida…


Sentir tudo excessivamente,
Sentir tudo de todas as maneiras.
Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.


(Álvaro de Campos)


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